Afonso Tavares Dantas Neto
Promotor de Justiça titular da 5ª
Promotoria de Justiça de Juazeiro do Norte-CE
Desde a elaboração do atual
Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997), vem sendo objeto de
divergência a questão da natureza jurídica da direção de veículo automotor sem
habilitação. Para uns configura crime, enquanto outros consideram como mera
infração administrativa. A finalidade do presente escrito é contribuir para o
esclarecimento do assunto, oferecendo opções de leitura ao interessado no
assunto.
Quanto à natureza jurídica da
conduta de dirigir sem habilitação, convém gizar, ab initio, que a direção de
veículo automotor sem habilitação configura infração administrativa de
trânsito, descrita no art. 162 do Código de Trânsito Brasileiro, in verbis:
“Art. 162. Dirigir veículo:
I - sem possuir Carteira Nacional
de Habilitação ou Permissão para Dirigir:
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (três vezes) e
apreensão do veículo”.
Para configuração do crime de
trânsito consistente na direção de veículo automotor sem habilitação, há
necessidade da demonstração da existência do elemento do tipo denominado
“perigo de dano”. Aliás, tal expressão demarca a fronteira entre o ilícito administrativo
e o ilícito penal, ipsis verbi:
“Art. 309. Dirigir veículo
automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação
ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:
Penas - detenção, de seis meses a
um ano, ou multa”.
O professor Damásio de Jesus
explica em que consiste o crime de perigo de dano concreto, verbo ad verbum:
“Perigo concreto é o real, o que
na verdade acontece, hipóteses em que o dano ao objeto jurídico só não ocorre
por simples eventualidade, por mero acidente, sofrendo um sério risco (efetiva
situação de perigo). Na palavra da Claus Roxin, o resultado danoso só não
ocorre por simples casualidade (Derecho Penal; parte general, cit., p. 336). O
bem sofre uma real possibilidade de dano. São aqueles casos em que se diz que o
resultado não foi causado ‘por um triz’, em que o ‘quase’ procura explicar a
sua não-superveniência. São episódios em que o comportamento apresenta, de
fato, ínsita a probabilidade de causar dano ao bem jurídico e que, para a
existência do delito, é necessário provar sua ocorrência. Perigo concreto é,
pois, o que precisa ser demonstrado (valoração ex post, ‘prognose póstuma’).
Ex.: no art. 132 do CP há a definição de crime de perigo para a vida de outrem.
O perigo, no caso, não é presumido, mas, ao contrário, precisa ser investigado
e comprovado” (CRIMES DE TRÂNSITO. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 6).
A contravenção de “falta de
habilitação para dirigir veículo”, inscrita no art. 32 do Decreto-lei n°
3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), foi revogada, segundo entendimento
da doutrina amplamente majoritária e orientação uniforme dos Tribunais
Superiores.
Os mestres Fernando Capez e
Victor Eduardo Rios Gonçalves tratam do tema com exatidão, ipsis verbis:
“Se o agente é legalmente
habilitado, configura mera infração administrativa o fato de dirigir veículo
sem estar portando o documento” (ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO DE TRÂNSITO
BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 55).
Os autores acima citados acrescentam
que “a simples conduta de dirigir sem habilitação passou a configurar simples
infração administrativa (art. 162, I), demonstrando que o legislador quis
afastar a incidência de normas penais para o caso” (obra citada, p. 57).
Os mesmos professores foram além,
esclarecendo ainda que “pela sistemática antiga, o ato de dirigir sem
habilitação configurava concomitantemente a contravenção penal do art. 32 e a
infração administrativa prevista no art. 89, I, do antigo Código Nacional de
Trânsito. O novo Código, entretanto, tratou tanto da questão administrativa
quanto da penal, dispondo que, se a conduta gera perigo de dano, há crime, mas,
se não gera, há mera infração administrativa” (obra citada, p. 57). Os docentes
concluem que “o art. 32 da Lei das Contravenções Penais está derrogado, valendo
apenas no que se refere à sua segunda parte (dirigir, sem a devida habilitação,
embarcação a motor em águas públicas)” (obra citada, p. 60).
Os penalistas Sérgio Salomão
Shecaira e Luiz Flávio Gomes ensinam que “não ocorrendo condução anormal,
inexiste crime, subsistindo apenas a infração administrativa. Assim, se o
motorista é surpreendido estando conduzindo normalmente o veículo, só há
infração administrativa (art. 162, I, II e V, do CT)” (In DIREÇÃO SEM
HABILITAÇÃO – conferência – Cursos sobre Delitos de Trânsito, Complexo Jurídico
Damásio de Jesus, São Paulo, 6-3-1998, apud ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO DE
TRÂNSITO BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 61).
O criminalista Renato Marcão
destaca que “a mera condução de veículo automotor em via pública, sem a devida
Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de
dirigir, não é suficiente para a conformação típica. É imprescindível que se
associe a tal prática a ocorrência de perigo concreto, condição sem a qual a
conduta não se ajusta ao tipo em comento, ficando remetida à condição de mera
infração administrativa”(CRIMES DE TRÂNSITO. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 206).
A decisão abaixo do colendo
Superior Tribunal de Justiça confirma tudo que foi exposto acima, verbo ad
verbum:
RECURSO ESPECIAL. PENAL. DIREÇÃO
SEM HABILITAÇÃO. ART. 32 DA LEI DE CONTRAVENÇÃO PENAL E ART. 309 DA LEI
9.503/97.
1. As Cortes Superiores
sedimentaram o entendimento no sentido de que a direção de veículos automotores
sem habilitação, nas vias terrestres, pode constituir crime, nos termos do art.
309 do CTB, ou infração administrativa, consoante o art. 162, inciso I, do CTB,
a depender da ocorrência ou não de perigo concreto de dano, restando, pois,
derrogado o art. 32 da Lei de Contravenções Penais.
2. Recurso parcialmente conhecido
e, nessa parte, provido” (STJ - REsp 331.104/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ,
QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2004, DJ 17/05/2004, p. 266).
Conforme demonstrado acima, o
simples fato de dirigir veículo automotor sem habilitação representa apenas
infração administrativa. Para configuração do crime previsto no art. 309 da Lei
n° 9.503/1997, é necessário que o guiador do veículo, além da falta de
habilitação, revele perigo concreto de dano, pela maneira anormal de dirigir
(exemplos: excesso de velocidade, dirigir sobre uma roda, freadas bruscas,
trafegar em ziguezague, subir calçada, invadir cruzamento, “fechar” outros
veículos, etc).
Finalmente, após o exame da
legislação, da doutrina e da jurisprudência, resulta evidente que a mera
direção de veículo sem habilitação configura apenas infração administrativa de
trânsito, visto que somente ocorre crime de trânsito, propriamente dito, quando
observa-se que há direção anormal capaz de configurar o perigo concreto de dano
exigido pela legislação em vigor, em consonância com a exposição acima. Com
efeito, não havendo perigo de dano na conduta investigada, o fato será
penalmente atípico.
Fonte:
www.conteudojuridico.com.br
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