ATBD 2016 Ucpel Noite

"Luta. Teu dever é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça"
(Eduardo Couture)

domingo, 11 de novembro de 2012

Vítima e Direito Penal (Editora Mandamentos, BH, 2002)

Lélio Braga Calhau

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Professor de Direito Penal da Universidade Vale do Rio Doce − UNIVALE
Pós−graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal Mestrando em Direito pela Universidade Gama Filho (RJ) 

Já tivemos oportunidade de discorrer em um pequeno texto sobre o papel de José Ingenieros (01) junto à Criminologia e a Escola Positiva de Direito Penal. Ingenieros, foi um dos grandes defensores das idéias da Escola Positiva em nosso continente. Todavia, foi Cesare Lombroso, médico italiano, que ocupou um dos papéis centrais, juntamente com Ferri e Garofalo na Criminologia e na Escola Positiva de Direito Penal.

Fala−se muito de Lombroso (1835−1909), em especial, no meio acadêmico, mas pouco se conhece verdadeiramente do papel que teve para a Criminologia e a Escola Positiva de Direito Penal. Lombroso estudou na Universidade de Pádua, Viena, e Paris e foi posteriormente (1862−1876) professor de psiquiatria na Universidade de Pavia e medicina forense e higiene (1876), psiquiatria (1896) e antropologia criminal (1906) na Universidade de Turim. Foi também diretor de um asilo mental na Itália. 

As idéias de Lombroso sustentaram um momento de rompimento de paradigmas no Direito Penal e o surgimento da fase científica da Criminologia. Lombroso e os adeptos da Escola Positiva de Direito Penal rebateram a tese da Escola Clássica da responsabilidade penal lastreada no livre−arbítrio. Com o despontar da filosofia positivista e o florescimento dos estudos biológicos e sociológicos, nasce a escola positiva. Essa escola, produto do naturalismo, sofreu influência da doutrina evolucionista (Darwin, Lamarck); materialista (Buchner, Haeckel e Molenschott); sociológica (Comte, Spencer, Ardig e Wundt); frenológica (Gall); fisionômica (Lavater) e ainda dos estudos de Villari e Cattaneo (02). 

A Escola Positiva surgiu no contexto de um acelerado desenvolvimento das ciências sociais (Antropologia, Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, estatística etc). Esse fato determinou de forma significativa uma nova orientação nos estudos criminológicos. Ao abstrato individualismo da Escola Clássica, a Escola Positiva opôs a necessidade de defender mais enfaticamente o corpo social contra a ação do delinqüente, priorizando os interesses sociais em relação aos indivíduos (03). 

De fato, o modelo proposto pelos juristas que se aliaram ao movimento positivista respondia às necessidades da burguesia no final do século XIX. Esta havia se apoiado inicialmente em um Direito Penal Liberal que lhe havia permitido neutralizar a nobreza, limitando, através de um órgão legítimo, seu poder arbitrário. Agora, com o estabelecimento definitivo da nova ordem burguesa, era necessário encontrar outros recursos penais que assegurassem a superveniência da nova ordem social. A burguesia se sentia ameaçada, não mais pela nobreza e seu poder arbitrário, senão pelas classes perigosas, ou seja, pelas classes menos favorecidas que levavam dentro de si o germe da degeneração e o crime. As idéias penais e criminológicas dos positivistas coincidem com esta preocupação central das novas classes privilegiadas e lhes proporcionaram um instrumento prático e teórico para afugentar o perigo que para a estabilidade social representavam os despojados (04). 

Os positivistas rechaçaram totalmente a noção clássica de um homem racional capaz de exercer seu livre arbítrio. O positivista sustentava que o delinqüente se revelava automaticamente em suas ações e que estava impulsionado por forças que ele mesmo não tinha consciência (05). Esta corrente de pensamento generalizou−se, exultante, a convicção, em um primeiro momento, industrialista e, logo a seguir, capitalistas, do progresso linear do saber humano, através de ciências que se entendiam quase como religiões laicas, capazes de explicar, prever e manipular todos os fenômenos da vida. O positivismo está estreitamente ligado à busca metódica sustentada no experimental, rechaçando noções religiosas, morais, apriorísticas ou conceitos abstratos, universais ou absolutos. O que não fosse demonstrável materialmente, por via de experimentação reproduzível, não podia ser científico (06). 

O ponto de partida da teoria de Lombroso proveio de pesquisas craniométricas de criminosos, abrangendo fatores anatômicos, fisiológicos e mentais (07). A base da teoria, primeiramente foi o atavismo: o retrocesso atávico ao homem primitivo. Depois, a parada do desenvolvimento psíquico: comportamento do delinqüente semelhante ao da criança. Por fim, a agressividade explosiva do epilético. Lombroso expôs em detalhe suas observações e teorias na obra O Homem Delinqüente cuja primeira edição apareceu em 1876, convertendo−o em celebridade. Em 1885, realizou−se em Roma um Primeiro Congresso de Antropologia Criminal, e as teses e propostas de Lombroso obtiveram grande sucesso e reconhecimento científico. Esses dez anos transcorridos entre seu livro e o congresso demonstraram a rapidez com que se alcançava o êxito científico nas sociedades européias, ávidas por novidades, descobertas espetaculares e gênios, à base de uma imprensa alimentada com os descobrimentos do fim do século XIX (08). 

Lombroso mudava o fundamento de sua teoria segundo as investigações que realizava. Sua obra fundamental O Homem Delinqüente, passara de 252 páginas em sua primeira edição a 1903 páginas em sua quinta edição de 1896 e 1897. A contribuição principal de Lombroso para a Criminologia não reside tanto em sua famosa tipologia (onde destaca a categoria do delinqüente nato) ou em sua teoria criminológica, senão no método que utilizou em suas investigações: o método empírico. Sua teoria do delinqüente nato foi formulada com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinqüentes e seis mil análises de delinqüentes vivos; e o atavismo que, conforme o seu ponto de vista, caracteriza o tipo criminoso − ao que parece − contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões européias (09). A idéia de atavismo aparece estreitamente unida a figura do delinqüente nato. Segundo Lombroso, criminosos e não−criminosos se distinguem entre si em virtude de uma rica gama de anomalias e estigmas de origem atávica ou degenerativa (10). 

Lombroso apontava as seguintes características corporais do homem delinqüente: protuberância occipital, órbitas grandes, testa fugidia, arcos superciliares excessivos, zígomas salientes, prognatismo inferior, nariz torcido, lábios grossos, arcada dentária defeituosa, braços excessivamente longos, mãos grandes, anomalias dos órgão sexuais, orelhas grandes e separadas, polidactia. As características anímicas, segundo o autor, são: insensibilidade à dor, tendência a tatuagem, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo (1). 

Lombroso foi modificando seus postulados nas edições sucessivas de sua obra e, por ela, se viu obrigado a incorporar os resultados daquelas observações empíricas que justificam suas mudanças de orientação. As correções que foi introduzindo não alteravam o núcleo de sua teoria, ou seja, o postulado segundo o qual existe uma diferença biológica entre o delinqüente e o não−delinqüente (12). Carlos Alberto Elbert registra que, em muito pouco tempo, diversas verificações médicas foram relativizando a validade das descobertas de Lombroso, que teve de retificar constantemente suas afirmações mais ousadas; assim, no princípio afirmou que entre 65% e 75% do total de criminosos tendiam à classificação de natos, para depois fixar essa quantidade em 40%, e finalmente em um terço. Terminou atribuindo à epilepsia a causa da delinqüência, tese que também foi refutada em pouco tempo (13).  

As teorias deterministas de Lombroso não encontraram apoio nos estudos desenvolvidos por seus discípulos. Suas idéias não haviam se baseado em uma metodologia rigorosamente científica (14).Lombroso morreu em 19 de outubro de 1909, em Turim, Itália. NOTAS DE FIM ALBERGARIA, Jason. Noções de Criminologia. Belo Horizonte, Mandamentos, 1999, p. 131. ALBERGARIA, op. cit, p. 131−132. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal, Parte Geral, São Paulo, 2000, p. 52.

CALHAU, Lélio Braga. Criminologia positiva e a obra de José Ingenieros. Belo Horizonte, Jornal do Sindicato dos Promotores e Procuradores de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Junho de 2002, p. 03. Disponível também na internet: http://w.ibccrim.org.br e http://w.pgj.mg.gov.br.

ELBERT, Carlos Alberto. Manual Básico de Criminologia. Tradução de Ney Fayet Jr. Porto Alegre, Ricardo Lenz, 2003, p. 54.
ELBERT, op. cit, p. 56. ELBERT, op. cit, p. 57.

GARRIDO, Vicente; STANGELAND, Per; REDONDO, Santiago. Principios de Criminologia. 2a ed, Valencia, Tirant lo Blanch, 2001, p. 252.

MOLINA, Antonio García−Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia, 4a edição, São Paulo, RT, 2002, p. 191.
MOLINA, Antonio García−Pablos. Tratado de Criminología. 2ª ed, Valencia, Tirant, 1999, p. 381. 

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, São Paulo, RT, 1999, p. 47.

RABUFFETTI, M. Susana Ciruzzi de. Breve ensayo acerca de las principales escuelas criminológicas. Buenos Aires, Fabián J. Di Placido, 1999, p. 35.

ROMERO, Gladys Nancy. La evolución hacia una criminología radical. Buenos Aires, Fabián J. Di Placido, 1999, p. 89.
ROMERO, op. cit, p. 57−58.

sábado, 10 de novembro de 2012

“Direitos humanos para humanos direitos” (Matheus Pichonelli)

Almeidinha era o sujeito inventado pelos amigos de faculdade para personalizar tudo o que não queríamos nos transformar ao longo dos anos. A projeção era a de um cidadão médio: resmungão em casa, satisfeito com o emprego na “firma” e à espera da aposentadoria para poder tomar banho, colocar pijama às quatro da tarde, assistir ao Datena e reclamar da janta preparada pela esposa. O Almeidinha é aquele sujeito capaz de rir de qualquer piada de português, negro, gay e loira. Que guarda revistas pornográficas no armário, baba nas pernas da vizinha desquitada (é assim que ele fala) mas implica quando a filha coloca um vestido mais curto. Que não perde a chance de dizer o quanto a esposa (ele chama de “patroa”) engordou desde o casamento.

O Almeidinha, para nosso espanto, está hoje em toda parte. Multiplicou-se em proporção geométrica e, com os anos, se modernizou. O sujeito que montava no carro no fim de semana e levava a família para ir ao jardim zoológico dar pipoca aos macacos (apesar das placas de proibição) sucumbiu ao sinal dos tempos e aderiu à internet. Virou um militante das correntes de e-mail com alertas sobre o perigo comunista, as contas no exterior do ex-presidente, os planos do Congresso para acabar com o 13º salário. Depois foi para o Orkut. Depois para o Facebook. Ali encontrou os amigos da firma que todos os dias o lembram dos perigos de se viver num mundo sem valores familiares. O Almeidinha presta serviços humanitários ao compartilhar alarmes sobre privacidade na rede, homenagens a pessoas doentes e fotos de crianças deformadas. O Almeidinha também distribui bons dias aos amigos com piadas sobre o Verdão (“estude para o vestibular porque vai cair…hihihii”) e mensagens motivacionais. A favorita é aquela sobre amar as pessoas como se não houvesse amanhã, que ele jura ser do Cazuza mas chegou a ele como Caio Fernandes (sic) Abreu.

O Almeidinha gosta também de se posicionar sobre os assuntos que causam comoção. Para ele, a atual onda de violência em São Paulo só acontece porque os pobres, para ele potenciais criminosos (seja assassino ou ladrão de galinha) têm direitos demais. O Almeidinha tem um lema: “Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Aliás, é ouvir essa expressão, que ele não sabe definir muito bem, e o Almeidinha boa praça e inofensivo da vizinhança se transforma. “Lógica da criminalidade”, “superlotação de presídios”, “sindicato do crime”, “enfrentamento”, “uso excessivo da força”, para ele, é conversa de intelectual. E se tem uma coisa que o Almeidinha detesta mais que o Lula ou o Mano Menezes (sempre nesta ordem) é intelectual. O Almeidinha tem pavor. Tivesse duas bombas eram dois endereços certos: a favela e a USP. A favela porque ele acredita no governador Sergio Cabral quando ele fala em fábrica de marginais. A USP porque está cansado de trabalhar para pagar a conta de gente que não tem nada a fazer a não ser promover greves, invasões, protestos e espalhar palavras difíceis. O Almeidinha vota no primeiro candidato que propuser esterilizar a fábrica de marginal e a construção de um estacionamento no lugar da universidade pública.

Uma metralhadora na mão do Almeidinha e não sobraria vagabundo na Terra. (O Almeidinha até fala baixo para não ser repreendido pela “patroa”, mas se alguém falar ao ouvido dele que “Hitler não estava assim tão errado” ganha um amigo para o resto da vida).

A cólera, que o fazia acordar condenando o mundo pela manhã, está agora controlada graças aos remédios. O Almeidinha evoluiu muito desde então. Embora desconfiado, o Almeidinha anda numas, por exemplo, de que agora as coisas estão entrando nos eixos porque os políticos – para ele a representação de tudo o que o impediu de ter uma casa na praia – estão indo para a cadeia. Ele não entende uma palavra do que diz o tal do Joaquim Barbosa, mas já reservou espaço para um pôster do ministro do Supremo ao lado do cartaz do Luciano Huck (“cara bom, ajuda as pessoas”) e do Rafinha Bastos (“ele sim tem coragem de falar a verdade”). O Almeidinha não teve colegas negros na escola nem na faculdade, mas ele acha que o exemplo de Barbosa e do presidente Barack Obama é prova inequívoca de que o sistema de cotas é uma medida populista. É o que dizia o “meme” que ele espalhou no Facebook com o argumento de que, na escravidão, o tráfico de escravos tinha participação dos africanos. Por isso, quando o assunto encrespa, ele costuma recorrer ao “nada contra, até tenho amigos de cor (é assim que ele fala), mas muitos deles têm preconceitos contra eles mesmos”.

O Almeidinha costuma repetir também que os pobres é que não se ajudam. Vê o caso da empregada, que achou pouco ganhar vinte reais por dia para lavar suas cuecas e preferiu voltar a estudar. Culpa do Bolsa Família, ele diz, esse instrumento eleitoral que leva todos os nordestinos, descendentes de nordestinos e simpatizantes de nordestinos a votar com medo de perder a boquinha. Em tempo: o filho do Almeidinha tem quase 30 anos e nunca trabalhou. Falta de oportunidade, diz o Almeidinha, só porque o filho não tem pistolão. Vagabundo é outra coisa. Outra cor. Como o pai, o filho do Almeidinha detesta qualquer tipo de bolsa governamental. A bolsa-gasolina que recebe do pai, garante, é outra coisa. Não mexe com recurso público. (O Almeidinha não conta pra ninguém, mas liga todo dia, duas vezes por dia, para o primo de um conhecido instalado na prefeitura para saber se não tem uma boca de assessor para o filho em algum gabinete).

O filho do Almeidinha também é ativista virtual. Curte PlayStation, as sacadas do Willy Wonka, frases sobre erros de gramática do Enem, frases sobre o frio, sobre o que comer no almoço e sobre as bebedeiras com os moleques no fim de semana (segue a página de oito marcas de cerveja). Compartilha vídeos de propagandas de carro e fotos de mulheres barrigudas e sem dentes na praia. Riu até doer a barriga com a página das barangas. Detesta política – ele não passa um dia sem lembrar a eleição do Tiririca para dizer que só tem palhaço em Brasília. E se sente vingado toda vez que alguém do CQC faz “lero-lero” na frente do Congresso. Acha todos eles uns caras fodásticos (é assim que ele fala). Talvez até mais que o Arnaldo Jabor. Pensa em votar com nariz de palhaço na próxima eleição (pensa em fazer isso até que o voto deixe de ser obrigatório e ele possa aproveitar o domingo no videogame). Até lá, vai seguir destruindo placas e cavaletes que atrapalham suas andanças pela cidade.

Como o pai, o filho do Almeidinha tem respostas e certezas para tudo. Não viveu na ditadura, mas morre de saudade dos tempos em que as coisas funcionavam. Espera ansioso um plebiscito para introduzir de vez a pena de morte (a única solução para a malandragem) e reduzir a maioridade penal até o dia em que se poderá levar bebês de oito meses para a cadeia. Quer um plebiscito também para acabar com a Marcha das Vadias. O que é bonito, para ele, é para se ver. E se tocar. E ninguém ouve cantada se não provoca (a favorita dele é “hoje não é seu aniversário mas você está de parabéns, sua linda”. Fala isso com os amigos e sai em disparada no carro do pai. O filho do Almeidinha era “O” zoão da turma na facul).

Pai e filho estão cada vez mais parecidos. O pai já joga Playstation e o menino de 30 anos já fala sobre a decadência dos costumes. Para tudo têm uma sentença: “Ê, Brasil”. Almeidinha pai e Almeidinha filho têm admiração similar ao estilo civilizado de vida europeu. Não passam um dia sem dizer que a vida, deles e da humanidade em geral, seria melhor se o país fosse dividido entre o Brasil do Sul e o Brasil do Norte. Quando esse dia chegar, garantem, o Brasil enfim será o país do presente e não do futuro. Um país à imagem e semelhança de um Almeidinha.