Almeidinha era o sujeito inventado pelos amigos de faculdade para
personalizar tudo o que não queríamos nos transformar ao longo dos anos.
A projeção era a de um cidadão médio: resmungão em casa, satisfeito com
o emprego na “firma” e à espera da aposentadoria para poder tomar
banho, colocar pijama às quatro da tarde, assistir ao Datena e reclamar
da janta preparada pela esposa. O Almeidinha é aquele sujeito capaz de
rir de qualquer piada de português, negro, gay e loira. Que guarda
revistas pornográficas no armário, baba nas pernas da vizinha desquitada
(é assim que ele fala) mas implica quando a filha coloca um vestido
mais curto. Que não perde a chance de dizer o quanto a esposa (ele chama
de “patroa”) engordou desde o casamento.
O Almeidinha, para nosso espanto, está hoje em toda parte.
Multiplicou-se em proporção geométrica e, com os anos, se modernizou. O
sujeito que montava no carro no fim de semana e levava a família para ir
ao jardim zoológico dar pipoca aos macacos (apesar das placas de
proibição) sucumbiu ao sinal dos tempos e aderiu à internet. Virou um
militante das correntes de e-mail com alertas sobre o perigo comunista,
as contas no exterior do ex-presidente, os planos do Congresso para
acabar com o 13º salário. Depois foi para o Orkut. Depois para o
Facebook. Ali encontrou os amigos da firma que todos os dias o lembram
dos perigos de se viver num mundo sem valores familiares. O Almeidinha
presta serviços humanitários ao compartilhar alarmes sobre privacidade
na rede, homenagens a pessoas doentes e fotos de crianças deformadas. O
Almeidinha também distribui bons dias aos amigos com piadas sobre o
Verdão (“estude para o vestibular porque vai cair…hihihii”) e mensagens
motivacionais. A favorita é aquela sobre amar as pessoas como se não
houvesse amanhã, que ele jura ser do Cazuza mas chegou a ele como Caio
Fernandes (sic) Abreu.
O Almeidinha gosta também de se posicionar sobre os assuntos que causam
comoção. Para ele, a atual onda de violência em São Paulo só acontece
porque os pobres, para ele potenciais criminosos (seja assassino ou
ladrão de galinha) têm direitos demais. O Almeidinha tem um lema:
“Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Aliás, é ouvir essa expressão,
que ele não sabe definir muito bem, e o Almeidinha boa praça e
inofensivo da vizinhança se transforma. “Lógica da criminalidade”,
“superlotação de presídios”, “sindicato do crime”, “enfrentamento”, “uso
excessivo da força”, para ele, é conversa de intelectual. E se tem uma
coisa que o Almeidinha detesta mais que o Lula ou o Mano Menezes (sempre
nesta ordem) é intelectual. O Almeidinha tem pavor. Tivesse duas bombas
eram dois endereços certos: a favela e a USP. A favela porque ele
acredita no governador Sergio Cabral quando ele fala em fábrica de
marginais. A USP porque está cansado de trabalhar para pagar a conta de
gente que não tem nada a fazer a não ser promover greves, invasões,
protestos e espalhar palavras difíceis. O Almeidinha vota no primeiro
candidato que propuser esterilizar a fábrica de marginal e a construção
de um estacionamento no lugar da universidade pública.
Uma metralhadora na mão do Almeidinha e não sobraria vagabundo na Terra.
(O Almeidinha até fala baixo para não ser repreendido pela “patroa”,
mas se alguém falar ao ouvido dele que “Hitler não estava assim tão
errado” ganha um amigo para o resto da vida).
A cólera, que o fazia acordar condenando o mundo pela manhã, está agora
controlada graças aos remédios. O Almeidinha evoluiu muito desde então.
Embora desconfiado, o Almeidinha anda numas, por exemplo, de que agora
as coisas estão entrando nos eixos porque os políticos – para ele a
representação de tudo o que o impediu de ter uma casa na praia – estão
indo para a cadeia. Ele não entende uma palavra do que diz o tal do
Joaquim Barbosa, mas já reservou espaço para um pôster do ministro do
Supremo ao lado do cartaz do Luciano Huck (“cara bom, ajuda as pessoas”)
e do Rafinha Bastos (“ele sim tem coragem de falar a verdade”). O
Almeidinha não teve colegas negros na escola nem na faculdade, mas ele
acha que o exemplo de Barbosa e do presidente Barack Obama é prova
inequívoca de que o sistema de cotas é uma medida populista. É o que
dizia o “meme” que ele espalhou no Facebook com o argumento de que, na
escravidão, o tráfico de escravos tinha participação dos africanos. Por
isso, quando o assunto encrespa, ele costuma recorrer ao “nada contra,
até tenho amigos de cor (é assim que ele fala), mas muitos deles têm
preconceitos contra eles mesmos”.
O Almeidinha costuma repetir também que os pobres é que não se ajudam.
Vê o caso da empregada, que achou pouco ganhar vinte reais por dia para
lavar suas cuecas e preferiu voltar a estudar. Culpa do Bolsa Família,
ele diz, esse instrumento eleitoral que leva todos os nordestinos,
descendentes de nordestinos e simpatizantes de nordestinos a votar com
medo de perder a boquinha. Em tempo: o filho do Almeidinha tem quase 30
anos e nunca trabalhou. Falta de oportunidade, diz o Almeidinha, só
porque o filho não tem pistolão. Vagabundo é outra coisa. Outra cor.
Como o pai, o filho do Almeidinha detesta qualquer tipo de bolsa
governamental. A bolsa-gasolina que recebe do pai, garante, é outra
coisa. Não mexe com recurso público. (O Almeidinha não conta pra
ninguém, mas liga todo dia, duas vezes por dia, para o primo de um
conhecido instalado na prefeitura para saber se não tem uma boca de
assessor para o filho em algum gabinete).
O filho do Almeidinha também é ativista virtual. Curte PlayStation, as
sacadas do Willy Wonka, frases sobre erros de gramática do Enem, frases
sobre o frio, sobre o que comer no almoço e sobre as bebedeiras com os
moleques no fim de semana (segue a página de oito marcas de cerveja).
Compartilha vídeos de propagandas de carro e fotos de mulheres
barrigudas e sem dentes na praia. Riu até doer a barriga com a página
das barangas. Detesta política – ele não passa um dia sem lembrar a
eleição do Tiririca para dizer que só tem palhaço em Brasília. E se
sente vingado toda vez que alguém do CQC faz “lero-lero” na frente do
Congresso. Acha todos eles uns caras fodásticos (é assim que ele fala).
Talvez até mais que o Arnaldo Jabor. Pensa em votar com nariz de palhaço
na próxima eleição (pensa em fazer isso até que o voto deixe de ser
obrigatório e ele possa aproveitar o domingo no videogame). Até lá, vai
seguir destruindo placas e cavaletes que atrapalham suas andanças pela
cidade.
Como o pai, o filho do Almeidinha tem respostas e certezas para tudo.
Não viveu na ditadura, mas morre de saudade dos tempos em que as coisas
funcionavam. Espera ansioso um plebiscito para introduzir de vez a pena
de morte (a única solução para a malandragem) e reduzir a maioridade
penal até o dia em que se poderá levar bebês de oito meses para a
cadeia. Quer um plebiscito também para acabar com a Marcha das Vadias. O
que é bonito, para ele, é para se ver. E se tocar. E ninguém ouve
cantada se não provoca (a favorita dele é “hoje não é seu aniversário
mas você está de parabéns, sua linda”. Fala isso com os amigos e sai em
disparada no carro do pai. O filho do Almeidinha era “O” zoão da turma
na facul).
Pai e filho estão cada vez mais parecidos. O pai já joga Playstation e o
menino de 30 anos já fala sobre a decadência dos costumes. Para tudo
têm uma sentença: “Ê, Brasil”. Almeidinha pai e Almeidinha filho têm
admiração similar ao estilo civilizado de vida europeu. Não passam um
dia sem dizer que a vida, deles e da humanidade em geral, seria melhor
se o país fosse dividido entre o Brasil do Sul e o Brasil do Norte.
Quando esse dia chegar, garantem, o Brasil enfim será o país do presente
e não do futuro. Um país à imagem e semelhança de um Almeidinha.